terça-feira, 11 de maio de 2010

Mercados ganham, a política perde

CLÓVIS ROSSI

O BIS (Banco de Compensações Internacionais, uma espécie de banco central dos bancos centrais) divulgou ontem o seu relatório sobre essa opaca atividade financeira batizada de derivativos OTC ("over-the-counter", não necessariamente registrados em algum mecanismo de regulação/supervisão do sistema financeiro).
Derivativos são, para simplificar, apostas em determinados ativos, como valor de uma moeda, juros, commodities etc.

Ao terminar 2009, o total desse tipo de apostas subira 2% sobre 2008, para chegar a US$ 650 trilhões. Sim, trilhões. A riqueza tangível do mundo (bens e serviços) era então de cerca de US$ 70 trilhões, pouco mais de um décimo do valor (suposto) de papéis intangíveis.

Alguma surpresa com o fato de que os mercados financeiros em que se negociam os OTCs e tantos outros instrumentos, muitos igualmente opacos, estejam dando uma formidável surra nos governos?
O formidável pacote de suporte ao euro e aos países que o utilizam, divulgado na madrugada de ontem, é apenas a mais recente evidência de que há descompassos na economia mundial que ou são corrigidos ou manterão o planeta com o coração na mão por muitos e muitos anos.

Como disse no domingo a "El País" Felipe González, ex-presidente do governo espanhol, hoje coordenador do chamado "grupo de sábios" que busca desenhar a Europa do futuro, "se a economia mundial cresce 4%, o comércio mundial, 4,5%, e os movimentos de capital, 60% acumulados, algo não funciona bem" (os números referem-se a 1999; de lá para cá, a relação só piorou).

Tanto não funciona que, há apenas um ano, o G20, o clube das 20 maiores economias mundiais, anunciava em Londres, solenemente, que mobilizaria US$ 1,1 trilhão para evitar uma colapso econômico, provocado, em grande medida, pelos OTCs e seus parentes próximos ou não tão próximos.

Agora, vêm a União Europeia e os bancos centrais do mundo rico anunciar outros US$ 750 bilhões. Sem eles, diz o ministro belga de Finanças, Didier Reynders, haveria "outro Lehman Brothers" (alusão à quebra dessa instituição norte-americana que precipitou o colapso de 2008).
Parece óbvio que o mundo não pode funcionar de pacote em pacote.

O primeiro descompasso está na velocidade de ação: os operadores de mercado tomam suas decisões em segundos; os governos forçosamente tardam tempo bem maior para agir ou reagir.
O cálculo das autoridades europeias era o de que a recuperação da economia mundial ajudaria no crescimento de cada país de tal forma que poderiam reduzir seus deficit gradualmente e, assim, evitar o calote.

Aliás, grande parte do deficit foi provocado exatamente pela necessidade de socorrer bancos quebrados, entre outras áreas do setor privado. Ou seja, não se trata, desta vez, de um deficit gerado pela compulsão dos governantes, antiga como o mundo, a gastar demais.

A Espanha, por exemplo, tinha em 2007, antes, portanto, do Lehman Brothers, um saldo nas suas contas: arrecadava o equivalente a 41,1% de seu PIB e gastava apenas 39,2%. "Lucro", portanto, de 1,9 ponto percentual.

A necessária lentidão para operar a redução dos deficit acabou atropelada pelo que o ministro das Finanças da Suécia, Anders Borg, classificou de "lobos" do mercado financeiro, atacando um país atrás do outro.

Racionalidade

Parte desses ataques tem de fato racionalidade econômica. No caso da Grécia, houve até fraude nas estatísticas (estimulada, aliás, por um dos "lobos").

Mas há neles uma evidência do segundo descompasso: governos têm que seguir regras, inclusive a de submeter decisões como a de lançar o pacote desta segunda-feira a seus Parlamentos. A parte mais aventureira dos mercados financeiros, ao contrário, foi liberada da regulação.

De novo, Felipe González: "A maior contradição que estamos vivendo é que a operação de resgate das entidades financeiras privadas, provocada pelos seus próprios erros, fez-se à custa dos contribuintes e desequilibrou as contas públicas. Os operadores, agora, denunciam o desequilíbrio das contas públicas (...) para desestabilizar os mercados".

Esses descompassos foram apenas momentaneamente congelados pelo pacote europeu. Ainda haverá mais capítulos no que o presidente Barack Obama chamou de guerra com Wall Street.

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